Meu privilégio não é tão óbvio como parece

Eu me sinto privilegiado por uma série de motivos, mas que não necessiaremente são aqueles que a maioria das pessoas esperam.

icone do instagram Bruno Barros

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Estava assistindo um vídeo no Youtube sobre privilégio. A ideia do vídeo foi reunir algumas pessoas para uma suposta corrida ou caminhada. Existem várias versões e muitas nem tem corrida de verdade no final da atividade. Procure pelas palavras privilégio e corrida no Youtube e vão pipocar exemplos.

Confesso que depois dos vídeos eu fiquei mais na dúvida do que o contrário. Eu me sinto privilegiado em uma série de motivos, mas que eu acabei não vendo no vídeo. Pensando sobre o assunto, acabei percebendo que inclusive discordo e acho algumas insinuações perigosas. Por isso que resolvi escrever.

Homem de braços abertos no topo de uma pedra

Entendendo a atividade

A pessoa que organiza o processo junta uma quantidade considerável de pessoas de culturas, raças e histórias de vida diferentes. O objetivo é organizar uma espécie de corrida ou caminhada. Em alguns casos, prometem um prêmio em dinheiro.

Só que antes da corrida é necessário se fazer algumas perguntas. Se sua resposta para a pergunta indica um privilégio, você passa para a linha da frente, se a resposta mostra o contrário, você passa para a linha de trás.

A atividade parecer querer mostrar que algumas pessoas têm muitas vantagens no jogo da vida em relação as outras e conscientizar quem está na frente. Um vídeo mais famoso diz explicitamente que sua função é ajudar as pessoas a entender os efeitos dos privilégios sociais.

O filme pesa no lado emocional. Emocionando se conscientiza, aparentemente. Algumas versões fazem os participantes chorar. Sejam os mais privilegiados ou os menos.

Definindo privilégio

Quero explorar a definição de privilégio. Se olharmos no dicionário, temos:

  • Direitos ou vantagens concedidos a alguém, com exclusão de outros.
  • Título ou diploma com que se consegue essa vantagem.
  • Bem ou coisa a que poucos têm acesso.
  • Permissão especial.
  • Imunidade, prerrogativa.
  • Qualidade ou característica especial, geralmente positiva

Um vídeo também perguntou aos participantes o que eles achavam e uma resposta me chamou a atenção. O participante definiu como:

Privilégio é algo que as pessoas têm, mesmo não merecendo, pois não trabalharam por isso.

Repare na expressão “mesmo não merecendo”. Mesmo os vídeos reforçando a ideia de que as perguntas tentam tratar de coisas que dizem respeito a fatos incontroláveis pelo indivíduo privilegiado ou não, deixou escapar essa. Se o privilégio é definido antes da pessoa nascer, deveríamos entender que quem tem, também não é culpado. Fico com outra dúvida, nessa situação. Onde esse privilegiado consegue chegar mais fácil?

O privilégio te permite chegar onde?

Homens correndo

A linha de chegada é extremamente difícil de definir. Temos pessoas em depressão e infelizes em qualquer situação que possamos definir como sucesso. Pessoas com muito dinheiro, são referência em sua carreira em diversos campos, são famosas, são extremamente desejadas por sua aparência etc. Quais são os privilégios que cada um tem para obter sucesso em cada campo específico?

Acho difícil demais de encontrar e me recuso a simplificar que os privilégios são apenas para acessar recursos financeiros. O mundo é extremamente complexo e criamos teorias o tempo todo para tentar encontrar uma explicação.

O problema de algumas teorias é que elas parecem verdade só porque muitas pessoas, ou as pessoas certas, acreditam nela. Podem não representar em nada a realidade. É por isso que temos análises famosas e respeitadas que são opostas.

E no caso do vídeo, sabemos que o destino pode ser extremamente cruel com muita gente. Vemos todos os dias pessoas sendo julgadas por sua raça, cor, opção sexual, religião etc. Sempre que vemos alguma intenção de corrigir estes problemas, queremos acreditar com todas as forças que ela está correta.

Se você acredita que consegue ou não, estará certo

A frase acima se parece com uma frase que atribuem ao Henry Ford aí pela internet. Pode parecer frase pronta de livro de autoajuda, mas não é. O efeito Placebo e Nocebo são um fato e tratados pela medicina, por exemplo, com o devido cuidado.

Usualmente utilizamos eles no sentido mais físico. Quando estamos doentes e tomamos um remédio que não deveria ter efeito nenhum, mas que somos curados pelo fato de acreditar, este é o efeito placebo. O Nocebo é o efeito negativo. Por acreditar que algo faz mal, vai fazer mal.

Só que ambos os efeitos também têm efeito psicológico. Você achar que pode algo ou não pode está diretamente vinculado a sua capacidade de obter sucesso. Ainda adiciono outro efeito, chamado de Pigmaleão ou Rosenthal.

Simplificando, o efeito foi medido por psicólogos, onde a expectativa de um professor sobre seu aluno influência e muito o desempenho dos estudantes. O experimento foi repetido com ratos. Contar para um observador que um grupo de ratos aleatórios terão melhor desempenho ao escapar de um labirinto, faz com que os ratos tenham melhor desempenho.

Todos esses efeitos me fazem ver com preocupação como algumas iniciativas tentam educar as pessoas sobre privilégios. Provar para algumas pessoas que elas estão em situações piores e que outras estão em melhores, sem ter cuidado, pode aumentar a distância entre elas.

Cuidado se você ficou para trás

Digamos que você participe de uma atividade parecida ou tenha se colocado na situação ao ver o vídeo e tenha ficado entre as últimas posições antes do início da corrida. Você talvez sofre pela cor da sua pele, endereço que mora, situação financeira, violência familiar, ausência familiar, deficiência física, peso, altura, país de origem, religião, timidez, aparência física etc.

Independente do grupo que você se encaixa dos meus exemplos, as chances é que estatisticamente o seu grupo sofre de taxas maiores de alguns problemas. No entanto, mesmo o seu grupo, qualquer que seja, também tem pessoas que pertencem a um topo que será dita como bem-sucedida.

E alguém que está lendo isso ou que viu o vídeo não é provavelmente o desprivilegiado tratado ali. Quem empurra a estatística para baixo é quem está em uma situação tão vulnerável que tem uma probabilidade minúscula de assistir um vídeo desses ou participar de tal atividade.

Por isso meu cuidado. Você pegar alguém que tem muita possibilidade de influenciar o próprio destino e fazer com que essa pessoa acredite que está em desvantagem por causa de uma dificuldade específica não seria perigoso?

Assim, eu acredito que as políticas governamentais devem trabalhar para diminuir os problemas cada vez mais. Da melhor forma possível para cada caso. E na minha ignorância não sei dizer qual é o melhor caminho em nenhum dos casos, pois nunca me dediquei a estudar políticas sociais.

Só que na análise individual, eu também acho que cada um deve olhar para as pessoas do seu grupo que estão lá no topo. As pessoas que estão lá, com boa dose de esforço, sorte e persistência, chegaram ao topo por algum motivo. Sendo que estes três fatores citados vão ter maior influência dependendo da história de cada um.

Quem são seus heróis? Acredito que cabe a cada um de nós nos esforçamos de forma persistente, e esperar a sorte também aparecer. Talvez cheguemos no ponto em que poderemos não só chegar lá, mas levar muito mais gente conosco.

Eu também sinto muito se você é o primeiro lugar

Agora vamos imaginar que você é o primeiro lugar na atividade. Você está tão na frente que se der mais um passo, ganha a corrida. Você é homem, branco, muito bonito, nasceu em um dos países mais ricos do planeta, não tem nenhuma deficiência física e sua família tem mais dinheiro que eu posso imaginar.

Se você tem alguma consciência da sua situação, eu tenho muita pena de você. Infelizmente você dificilmente terá direito de sofrer por alguma coisa. Nenhuma das suas dúvidas ou angústias poderão ser justificadas. Hoje em dia, antes mesmo de alguém te conhecer, é fácil apontar o dedo para você e te julgar como a fonte de todo mal.

Se sua família ganha o dinheiro de forma suspeita. Não interessa quem você é. Sua individualidade nunca será grande o suficiente para apagar seu sobrenome.

Você não tem direito de sofrer na adolescência, de sentir falta dos pais que trabalham muito, de sofrer com o Bullying na escola, de sofrer porque aquela garota não gosta de você, por se sentir incapaz, por sentir que nunca vai fazer nada maior do que sua família fez.

Eu sinto muito por você nascer em um mundo onde você não tem como merecer todos os privilégios que teve. Mesmo que qualquer coisa que você faça nunca seja o bastante. Mesmo que apenas suportar os sofrimentos da vida sem reclamar – é o que todos esperam – possa ser para você insuportável.

Talvez só lhe reste viver o personagem. Apreciar a vida e não se importar com mais ninguém. Afinal é assim que definem os privilegiados. Enfim, seu privilégio me parece uma maldição. E por isso, eu sinto muito.

Meu ponto de partida

criança olhando o primeiro degrau de longa escada

Vendo o vídeo e escrevendo este texto eu não pude deixar de pensar na minha própria situação. Fazendo uma análise bem breve da minha infância, temos pontos que podem me jogar estatisticamente no grupo dos privilegiados ou não.

Eu sou homem, branco, alto, hétero, classe econômica média, saudável, minha família não seguia nenhuma religião minoritária, tive acesso à uma faculdade de qualidade e sem custos, acesso à um computador com internet desde meus 10 anos de idade, pais casados e presentes etc.

Pelo lado negativo podemos avaliar que por questões de saúde eu nasci de seis meses, perdi minha mãe aos 11 anos, meu pai não chegou à metade do ensino fundamental, minha educação sempre foi pública, cresci em um país desenvolvido, em um bairro de periferia da minha cidade, sou filho de nordestinos etc.

Dependendo do seu ponto de partida, você pode julgar que sou extremamente privilegiado ou o contrário. Inclusive pode avaliar mudar itens do lado positivo para o negativo e vice-versa. Eu mesmo mudaria facilmente alguns itens de lado, sem problemas.

Por exemplo, ter nascido de seis meses na época que nasci pode ser estatisticamente um problema, mas eu cresci ouvindo que era um sobrevivente. O que em larga escala parece um problema, para mim foi um ponto positivo. Eu sentia que era mais forte por causa disso.

Talvez eu seja o homem mais privilegiado do mundo

Avaliando meu ponto de partida, eu cheguei à conclusão pessoal que devo de ser uma das pessoas mais privilegiadas do mundo. Eu tenho privilégios que fazem com que eu acredite que tudo seja possível. Por ser homem, hétero e branco, ninguém vai fechar as portas para mim.

Eu também não ouvia ninguém falar que por ser filho de nordestino, ser brasileiro ou morar onde eu morava faria com que alguém fosse me tratar com preconceito. Só fui perceber que isso era possível depois de adulto.

Pelo outro lado, eu tive adversidades o suficiente na minha vida para que eu pudesse me desenvolver em meio aos problemas. Não só poder enfrentar estas situações, como ser plenamente capaz de admitir quando era difícil, pedir ajuda e ser ajudado. Poucos olhariam para minha situação e achariam que eu estaria sofrendo sem motivo.

Eu tive o benefício de ser privilegiado o suficiente para saber que ninguém me julgaria mal pela minha cor ou gênero, não saber quando o fariam, a além de tudo pouco diriam que eu não tinha o direito de sofrer e me negariam ajuda. O fato de estar ali no meio termo, talvez tenha me dado a possibilidade de ser o que eu quisesse ser.

Não consigo enxergar privilégios maior do que esses. Repito, eu podia ser quem quisesse ser. Chegar aonde pudesse imaginar. Talvez eu deva reconhecer, ser grato e viver de forma que eu faça justiça a esse privilégio.

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